quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Tudo de bom valeu mano

Exitem vocalistas esquisitos nesse mundo. Imagine um polaco enorme com dreads só no topo da cabeça, tipo uma mistura de viking com rastafari, ou de Ziggy Marley depois do trote da faculdade com Hulk Hooligan, com um vozeirão poderoso, que sobe ao palco de bermuda curta e tênis de corrida. Impacto puro. Assim foi o show da Fast Food Orchestra, banda de ska-ragga da Republica Tcheca que tocou ontem em Sampa.

O som é um ska pauleira, rápido e bem tocado, com vocais influenciados por rap e ragga. Letras em tcheco, inglês e (!) português. Os caras jogam no esquema quatro atrás e três na frente. Só craque. Na zaga, um baixista magrelo de boina, um tecladista com cara de que acabou de acordar, um guitarrista discreto e um baterista virtuoso e meio andrógeno. Lá na frente ficam um saxofonista e um trombonista que também cantam, junto com a figura do parágrafo anterior.

A galera tinha agitado no primeiro show da noite (King Rassan, ska instrumental, amigos meus), desanimado no segundo (Radio Ska, punk-ska adolescente) e voltou a pular com a energia do Fast Food. Impossível ficar indiferente aos caras. Aqui eu diria “vale a pena conferir”, mas como o show de ontem foi o último nessa passagem pelo Brasil e a terra deles fica meio longe, melhor postar um vídeo. Quem viu, viu.

Repare na letra, em português. O refrão diz “tudo de bom valeu mano”. Sensacional. O viking está filmando, aparece só de relance. Não dava para postar "aberto" do youtube, tem que clicar no link, sorry. Mas volte aqui depois!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O espírito do f***-se

Ah, não, escutar Marina antes do surfe não dá! alguém reclama no banco de trás.

- Meu amor se você foooor emboraaaaaaa...

Cara, esse som é louco, se liga na batida, tum, tá, tum, tá provoca Alemão, sabendo que a música não importa. Naquele momento, o bom-humor resistiria até ao último sucesso da Preta Gil. Impossível fazer cara feia quando o sol nasce e você está a caminho da praia, vendo se desmanchar a neblina que a noite depositou na Serra do Mar, nas encostas agora tingidas de laranja. Privilégio que só pode ser mais escandaloso se acontecer em plena terça-feira.

Isso mesmo, bate-volta relâmpago antes do trabalho. Por que não? Os sites de previsão de onda entoaram o canto da sereia. Eu só entro às onze. Alemão, produtor musical, não pega no pesado cedinho e tem bom gosto, apesar da trilha sonora duvidosa desta manhã. Os donos das outras duas pranchas amarradas no teto do carro arrumaram uma desculpa para bater o ponto atrasados. O combinado é voltar às nove. Nove significa nove! insisto. Se não estiver no carro às nove, volta de ônibus! – com aquele tom chato dos verdadeiros amigos.

O surfe estava incrível no Guarujá, clássico mesmo, daqueles raros. Mas, entre uma onda perfeita e outra melhor, um pensamento perturbador ficava boiando ali: daqui a pouco seremos obrigados a ir embora... Odioso sistema que tanto amamos! De tarde ondas douradas e lindas quebrarão nesta mesma praia, e eu estarei sentado em frente a um monitor cinza de 17 polegadas que trava a cada duas horas!

Ou não?

O espírito do foda-se está sempre rondando as almas inquietas. Fica na espreita. Quanto mais você envelhece, menos se manifesta, mas nunca deixa de existir, com sua lábia impertinente. E aí, colega? Troca uma pequena rebeldia por essas ondas, que, sabemos, não aparecem toda hora? No fim das contas, quando tudo passar, o que vai render uma história melhor para contar na cadeira de balanço?

O sol já estava quase dois palmos acima do horizonte. Digo, dois palmos medidos no final do comprimento do meu braço, não que essa fosse a distância real entre o horizonte e o sol, como você espertamente já imaginava. Importa é que o sol estava alto e era melhor perguntar as horas.

- Nove em ponto – respondeu um semelhante.

Hum... O que a gente tinha combinado, mesmo? Mordi os lábios, passei a mão aflita sobre a barba que começava a formar uma lixa e, em busca de resposta, mirei o horizonte. A resposta surgiu como uma parede de água verde-canário enviada para mim, com carimbo de remetente “Netuno” e tudo. Ela foi me levando, levando... e quando terminou, virei o bico da prancha e remei de volta para o oceano.

- Paraísos artifiiiiicia-ais...

Mas essa não é a história de um menino crescido que resolveu contar, com disfarçado orgulho, uma travessura. Não. É antes a batalha entre a vontade e a força esmagadora da consciência.

- E aí, brother? Tá na hora. Vamos subir?

- Vambora, Alemão.

Vitória da razão. Na onda seguinte, saí do mar com o leash entre as pernas e fui trabalhar. Mas depois pensei que disciplina talvez seja a liberdade suprema. E a liberdade total pode ser a pior prisão. Se você fizer sempre tudo o que der na telha, vira escravo da ansiedade e da impulsividade. Por outro lado, há um certo ponto da vida onde a miserável labuta cotidiana tem gosto de plenitude, independência... liberdade!

Só que o espírito do foda-se nunca desiste. Seria mesmo essa baboseira, ou você saiu da água por mera covardia? Será que esse apego à responsabilidade não é a boa e velha acomodação, a bunda-molice? Sei não, respondo ao fantasma. Mas ter quebrado a rotina da semana com uma manhã de ótimo surfe já foi uma dose satisfatória. E não fui tão caxias, senhor espírito das trevas. Aquela hesitação no mar me fez chegar quarenta minutos atrasado ao trabalho. Maior cara de pau. Para não falar da pele bronzeada. E o sorriso?

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A tartaruga-junkie do Guarujá

Presença tão certa nas ondas de Pitangueiras quanto a molecada do Morro do Maluf é uma tartaruguinha que ali mora, pobre bichinha. Se você for surfista e paulista, deve saber de quem estou falando. Ela está sempre na área. No último ano, nos encontramos em todas (sem exagero) as sessões de surfe que fiz naquelas águas turvas que também adoro. Ela surge, glub, sobe, olha, respira, glub, desce, sucinta, simpática e, vá lá, suja.

Em suas periscópicas aparições, a maior habituée do canto norte causa sempre algum rebuliço. Cada vez que a cabeça rajada salta, ninguém fica indiferente.
A maioria abre um sorriso. Uns se assustam, mas a tartaruga-junkie não é de meter medo, fica na dela, não ameaça, não faz cara feia nem xinga ninguém de haule. Há ainda quem finja ignorá-la com ar blasé, tô-nem-aí, já acostumei, feito perua que cruza o Gary Oldman no aeroporto e desvia o nariz. Mas os mais esquisitos vêem a bichinha e se põem a refletir: há algo de podre no reino da fauna marinha.

O que dá na cabeça retrátil de uma tartaruga para morar em Pitangueiras, uma das praias mais sujas do litoral paulista, tendo por aí tanto lugar fresco e agradável para habitar? Nadasse um pouco e iria encontrar água verde e comida abundante, mas não. A tartaruga-junkie gosta mesmo é de Pitangueiras, onde uma muralha de prédios encobriu a Serra do Mar e um fluxo interminável de esgoto tornou marrom a água. Será que viciou nas algas de lá? - que devem ser o equivalente marinho do churrasco grego de estádio de futebol. Brincadeiras à parte, o fato é que ela vive ali; e ali se alimenta.

Senhorita Junkie se sente à vontade entre os incontáveis surfistas do pedaço. Pensa, coitada, que não somos uma espécie predadora. Deve ter reparado que estamos mais interessados nas ondas que passam, como nuvens, sobre sua cabeça, por isso fica bem perto, sinal de outra mutação contra-evolutiva da coitada. Como as pombas das metrópoles, ela perdeu o medo dos humanos. Os terríveis humanos... Se entendo alguma coisa desses bípedes, acho que nossa amiga não deveria dar mole assim. Dia desses alguém faz com ela como fizeram com o golfinho Tião, lembra? O pessoal do litoral norte enfiou tanto palito de sorvete no orifício respiratório dele que um garoto acabou levando uma focinhada e morreu.

Em suma, a réptil está se tornando uma tartaruga de cidade grande. Já vive acostumada com correria, movimento, sujeira. Aposto como acha outras tartarugas umas caipiras. Nada meio apressada, sem perder tempo com pensamentos flutuantes. Anda com alguma gastrite, e talvez esteja consumindo ervas terapêuticas para dormir melhor. Em compensação está sempre por dentro das últimas, pelo menos quando o assunto é bermuda de surfista, decomposição de embalagens de salgadinho, novos modelos de absorvente feminino usado. Sabe como é, cidade grande tem seus males, mas tem suas benesses.

Outro dia mergulhei no quintal da cascuda antes das sete da manhã. Lá estava ela. Tinha um metro de onda nas séries, boa formação, pouca gente. Fiquei mais de três horas surfando. Perfeito. Tudo perfeito. Tudo certo no reino dos humanos. Nada de podre nas salas de reunião refrigeradas, nada fedendo nas entranhas de nossas cidades sujas. Nada. Uma onda graúda cavalga em minha direção. A tartaruga-junkie, cada dia mais contaminada de humanidades, emerge tão perto que pela primeira vez posso reparar em seus olhos mortiços.