quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O espírito do f***-se

Ah, não, escutar Marina antes do surfe não dá! alguém reclama no banco de trás.

- Meu amor se você foooor emboraaaaaaa...

Cara, esse som é louco, se liga na batida, tum, tá, tum, tá provoca Alemão, sabendo que a música não importa. Naquele momento, o bom-humor resistiria até ao último sucesso da Preta Gil. Impossível fazer cara feia quando o sol nasce e você está a caminho da praia, vendo se desmanchar a neblina que a noite depositou na Serra do Mar, nas encostas agora tingidas de laranja. Privilégio que só pode ser mais escandaloso se acontecer em plena terça-feira.

Isso mesmo, bate-volta relâmpago antes do trabalho. Por que não? Os sites de previsão de onda entoaram o canto da sereia. Eu só entro às onze. Alemão, produtor musical, não pega no pesado cedinho e tem bom gosto, apesar da trilha sonora duvidosa desta manhã. Os donos das outras duas pranchas amarradas no teto do carro arrumaram uma desculpa para bater o ponto atrasados. O combinado é voltar às nove. Nove significa nove! insisto. Se não estiver no carro às nove, volta de ônibus! – com aquele tom chato dos verdadeiros amigos.

O surfe estava incrível no Guarujá, clássico mesmo, daqueles raros. Mas, entre uma onda perfeita e outra melhor, um pensamento perturbador ficava boiando ali: daqui a pouco seremos obrigados a ir embora... Odioso sistema que tanto amamos! De tarde ondas douradas e lindas quebrarão nesta mesma praia, e eu estarei sentado em frente a um monitor cinza de 17 polegadas que trava a cada duas horas!

Ou não?

O espírito do foda-se está sempre rondando as almas inquietas. Fica na espreita. Quanto mais você envelhece, menos se manifesta, mas nunca deixa de existir, com sua lábia impertinente. E aí, colega? Troca uma pequena rebeldia por essas ondas, que, sabemos, não aparecem toda hora? No fim das contas, quando tudo passar, o que vai render uma história melhor para contar na cadeira de balanço?

O sol já estava quase dois palmos acima do horizonte. Digo, dois palmos medidos no final do comprimento do meu braço, não que essa fosse a distância real entre o horizonte e o sol, como você espertamente já imaginava. Importa é que o sol estava alto e era melhor perguntar as horas.

- Nove em ponto – respondeu um semelhante.

Hum... O que a gente tinha combinado, mesmo? Mordi os lábios, passei a mão aflita sobre a barba que começava a formar uma lixa e, em busca de resposta, mirei o horizonte. A resposta surgiu como uma parede de água verde-canário enviada para mim, com carimbo de remetente “Netuno” e tudo. Ela foi me levando, levando... e quando terminou, virei o bico da prancha e remei de volta para o oceano.

- Paraísos artifiiiiicia-ais...

Mas essa não é a história de um menino crescido que resolveu contar, com disfarçado orgulho, uma travessura. Não. É antes a batalha entre a vontade e a força esmagadora da consciência.

- E aí, brother? Tá na hora. Vamos subir?

- Vambora, Alemão.

Vitória da razão. Na onda seguinte, saí do mar com o leash entre as pernas e fui trabalhar. Mas depois pensei que disciplina talvez seja a liberdade suprema. E a liberdade total pode ser a pior prisão. Se você fizer sempre tudo o que der na telha, vira escravo da ansiedade e da impulsividade. Por outro lado, há um certo ponto da vida onde a miserável labuta cotidiana tem gosto de plenitude, independência... liberdade!

Só que o espírito do foda-se nunca desiste. Seria mesmo essa baboseira, ou você saiu da água por mera covardia? Será que esse apego à responsabilidade não é a boa e velha acomodação, a bunda-molice? Sei não, respondo ao fantasma. Mas ter quebrado a rotina da semana com uma manhã de ótimo surfe já foi uma dose satisfatória. E não fui tão caxias, senhor espírito das trevas. Aquela hesitação no mar me fez chegar quarenta minutos atrasado ao trabalho. Maior cara de pau. Para não falar da pele bronzeada. E o sorriso?

Um comentário:

lau disse...

é isso aí! café-da-manhã salgadinho, alma lavada e sorrisão no rosto. melhor que congestionamento na marginal. bemmmmmm melhor!
adorei!
bjs