terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A tartaruga-junkie do Guarujá

Presença tão certa nas ondas de Pitangueiras quanto a molecada do Morro do Maluf é uma tartaruguinha que ali mora, pobre bichinha. Se você for surfista e paulista, deve saber de quem estou falando. Ela está sempre na área. No último ano, nos encontramos em todas (sem exagero) as sessões de surfe que fiz naquelas águas turvas que também adoro. Ela surge, glub, sobe, olha, respira, glub, desce, sucinta, simpática e, vá lá, suja.

Em suas periscópicas aparições, a maior habituée do canto norte causa sempre algum rebuliço. Cada vez que a cabeça rajada salta, ninguém fica indiferente.
A maioria abre um sorriso. Uns se assustam, mas a tartaruga-junkie não é de meter medo, fica na dela, não ameaça, não faz cara feia nem xinga ninguém de haule. Há ainda quem finja ignorá-la com ar blasé, tô-nem-aí, já acostumei, feito perua que cruza o Gary Oldman no aeroporto e desvia o nariz. Mas os mais esquisitos vêem a bichinha e se põem a refletir: há algo de podre no reino da fauna marinha.

O que dá na cabeça retrátil de uma tartaruga para morar em Pitangueiras, uma das praias mais sujas do litoral paulista, tendo por aí tanto lugar fresco e agradável para habitar? Nadasse um pouco e iria encontrar água verde e comida abundante, mas não. A tartaruga-junkie gosta mesmo é de Pitangueiras, onde uma muralha de prédios encobriu a Serra do Mar e um fluxo interminável de esgoto tornou marrom a água. Será que viciou nas algas de lá? - que devem ser o equivalente marinho do churrasco grego de estádio de futebol. Brincadeiras à parte, o fato é que ela vive ali; e ali se alimenta.

Senhorita Junkie se sente à vontade entre os incontáveis surfistas do pedaço. Pensa, coitada, que não somos uma espécie predadora. Deve ter reparado que estamos mais interessados nas ondas que passam, como nuvens, sobre sua cabeça, por isso fica bem perto, sinal de outra mutação contra-evolutiva da coitada. Como as pombas das metrópoles, ela perdeu o medo dos humanos. Os terríveis humanos... Se entendo alguma coisa desses bípedes, acho que nossa amiga não deveria dar mole assim. Dia desses alguém faz com ela como fizeram com o golfinho Tião, lembra? O pessoal do litoral norte enfiou tanto palito de sorvete no orifício respiratório dele que um garoto acabou levando uma focinhada e morreu.

Em suma, a réptil está se tornando uma tartaruga de cidade grande. Já vive acostumada com correria, movimento, sujeira. Aposto como acha outras tartarugas umas caipiras. Nada meio apressada, sem perder tempo com pensamentos flutuantes. Anda com alguma gastrite, e talvez esteja consumindo ervas terapêuticas para dormir melhor. Em compensação está sempre por dentro das últimas, pelo menos quando o assunto é bermuda de surfista, decomposição de embalagens de salgadinho, novos modelos de absorvente feminino usado. Sabe como é, cidade grande tem seus males, mas tem suas benesses.

Outro dia mergulhei no quintal da cascuda antes das sete da manhã. Lá estava ela. Tinha um metro de onda nas séries, boa formação, pouca gente. Fiquei mais de três horas surfando. Perfeito. Tudo perfeito. Tudo certo no reino dos humanos. Nada de podre nas salas de reunião refrigeradas, nada fedendo nas entranhas de nossas cidades sujas. Nada. Uma onda graúda cavalga em minha direção. A tartaruga-junkie, cada dia mais contaminada de humanidades, emerge tão perto que pela primeira vez posso reparar em seus olhos mortiços.

Nenhum comentário: