terça-feira, 25 de março de 2008

Califórnia brasileira

Alerta: pode ser que eu exagere um pouco neste post. Para bem da precisão, aconselho descontar uns 30% dos elogios que seguem. Provavelmente fui influenciado pelas boas vibrações do momento. Portanto, quando logo mais eu chamar o pier de Mongaguá de Ocean Beach brasileira, não acredite. Mas é bem bacana, pode confiar. E pensar que acabei lá por causa do trânsito...

Nesta Páscoa, parte da minha família – inclusive eu – decidiu trocar ovinhos em Peruíbe, na pousada de um tio ricaço. Para enganar o congestionamento, saí de São Paulo às cinco da matina da Sexta-Feira Santa. Com efeito, desci a serra rapidinho. Quando o sol nasceu, já me encontrava passando por Mongaguá, uns 50 quilômetros antes do destino. Não conhecia a cidade. Tinha até algum preconceito à respeito, achava que fosse caidona.


Mas bateu a curiosidade. O tal pier de Mongaguá está sempre nos destaques do Waves, o site básico de previsão de onda, e aquele momento era perfeito para uma quebra de roteiro. Viajava sozinho, o duelo contra o engarrafamento já estava vencido e ainda era cedo demais para acordar os parentes. Peguei a saída à direita.


Para chegar ao pier, cruzei 10 quilômetros de orla. Que visual! O sol nascendo e tingindo tudo de laranja (alvorada, lá no morro, que beleza...), ondas de meio metro lisinhas e abrindo, quase ninguém na praia. Ok, isso poderia ser qualquer lugar. O que realmente me surpreendeu em Mongaguá foi o calçadão bem cuidado, com uma fila de coqueiros, os canteiros aparados com esmero, a rua com calçamento simpático de lajotas. Mas, principalmente, Mongaguá é do lado de São Paulo e não é apinhada de prédios à beira-mar! O que se vê são casas – nem um pouco caidonas – e tentadores terrenos à venda. Eu dizia baixinho: “meeeu, que lugar alto astral...”. Um quarteirão depois, dizia a mesma coisa, me dando conta de quão enganado eu estava sobre Mongaguá. Só tome cuidado para não ficar viajando na cena e socar o fundo do carro nas valetas, que são muitas, como fiz umas cinco vezes.


A praia segue e, aos poucos, a imagem do pier cresce e fica mais nítida. Quando chega, você encontra uma onda cavada e bem formada quebrando ao lado dele e jura que Mongaguá é a Ocean Beach brasileira (que exagero, Pedro...). O surfe rola quase embaixo da plataforma. Não havia muitos surfistas locais e os que surgiram pareceram amistosos, pelo menos com quem sabe chegar. Peguei umas boas e saí com a cabeça feitíssima.


Segui viagem com a alegria de quem arriscou e se deu bem. Levava um sorriso de orgulho com minha “descoberta” – entre aspas porque até parece que ninguém conhece Mongaguá... Mas, para mim, foi um achado. Onde mais você encontra uma onda boa, a uma hora e pouco de São Paulo, sem um crowd insuportável?

segunda-feira, 17 de março de 2008

Força estranha

Não é fácil explicar. Esse fim-de-semana fui pro Guarujá, com o Alemão e duas amigas. Nada de onda, céu cinza, chuvisco, vento e frio. Perfeito para se entocar no sofá, ler um livro, assistir a um filme, cozinhar, fumar um baseado, qualquer coisa menos surfar. Mas...

Mas não. Sábado cedo deixamos as garotas no conforto do apartamento e partimos bravamente rumo ao norte, onde talvez a ondulação estivesse maior. Na estrada, além de chuva e vento, esperança. Depois de uma hora e meia de monotonia na Rio-Santos, a placa indica Camburi.

Em três palavras, eis o que encontramos: merreca, fechando e crowd. Mas, uma vez na roubada, vá até o fim. Roupas de borracha, fomos pra água. Depois de meia hora de surfe medíocre, uma idéia lampejou na cabeça oca do Alemão. E se a gente fosse pra Praia Brava?

Para quem já está em Camburi, é só esticar até Boiçucanga e pegar o barco. Lá deve ter mais onda e menos gente. Isso. Vamos. Sai do mar, tira a roupa, seca o corpo, ajeita as pranchas no carro, dirige mais um pouco, negocia com o barqueiro, entra na lancha, chuva, frio, água espirrando, chega na Brava.

Em três palavras? Merreca, fechando e... deserta, pelo menos. Depois de uns 30 segundos de criteriosa análise, decidimos ficar. Já estamos aqui, mesmo. O surfe não foi nada de mais, umas valas de meio metrão explodindo bem na beirada, muitas vezes nos embolando no processo.

No fim do dia, voltamos para o Guarujá pela mesma estrada chuvosa e sonolenta. Como disse, algumas coisas não são fáceis de explicar. Não, não me refiro a tudo isso que acabo de contar. Difícil, no caso, é achar razão para a gente ainda voltar comemorando: “Pô, valeu o rolê, né?”. “Valeu, claro, pô, demais...”

quinta-feira, 13 de março de 2008

Repicando posts

Uns textos atrás falei da Fast Food Orchestra, banda de ska-ragga da República Checa. Eis que essa semana estava eu no boteco do bairro, conversando com um cara que tem uma banda, papo vai, papo vem, não é que ele tem um semi-primo no leste europeu que toca... na Fast Food! É o trombonista. O cara me contou umas coisas que eu não sabia. Por exemplo, era a primeira vez que a banda vinha ao Brasil. Perguntei o porquê das letras em português, então. “Ah, sei lá, os caras são muito loucos...”. Contou também que, na festa de despedida, o vocalista viking-rasta chorou feito criança: “Não quero ir embora do Brasil, não quero ir embora do Brasil...”.

Também alguns posts abaixo tirei um sarro do show grátis (ai, ai...) dos Titãs em Paraty. Ficou parecendo que foi uma merda, mas teve momentos bacanas. Imagine só. Acabou uma música, vieram os aplausos. Branco Mello gritou: “Vocês querem rooooock?!”. O coro respondeu: “Iiiiieeeeaaaahhhhhh”. Mello sobe um tom na empolgação: “Vocês querem quebrar tudooooooooooo?!”. A galera responde mais alto ainda, e o vocalista continua: “Vocês querem que não sobre pedra sobre pedraaaaaaa?!”. Urros ensandecidos. Então ele completa com voz calma, baixinha, benevolente: “Mas é uma cidade histórica, galera, a gente não pode fazer isso...”. Há, há, há! Todo mundo cai na risada...

sexta-feira, 7 de março de 2008

Descobrindo a bola

Minha escola de futebol foi a várzea. Foi na terra batida do glorioso Marítimo, ouvindo um negão de olhos azuis que um dia fora o Monstro do Maracanã, que a mágica aconteceu. Num daqueles vestiários fedendo a mijo me ensinaram a dar laço em chuteira, e levando cuspe e tapa na cara aprendi como me livrar de um marcador. Futebol era aquilo.

Era dividir bola perdida com os moleques do Clube Jabaquara, escutando nosso treinador gritar “chega chegando! chega chegando!”. Era rezar de mãos dadas antes de entrar em campo, pedindo proteção “a nós e ao nosso adversário”. Era terminar a partida e tomar um refrigerante no bar, ouvindo as piadas dos adultos. A gente não entendia direito, ria mais de timidez.

Na várzea é que o futebol acontecia. Você já viu um lateral-direito arremessar o ponta-esquerda no alambrado com um tranco de corpo e no processo arrancar-lhe uma orelha? Na várzea, eu vi. Quando jogo terminava sem feridos ou uma procissão querendo matar o juiz, o povo até estranhava. O que mais tinha ali era juiz ladrão. Às vezes roubavam tanto – a nosso favor, éramos o time da casa – que dava vergonha.

Mas era só jogar em outros campos que pagava-se na mesma moeda. Lembro de uma vez que fomos para Analândia, no interior. Eu defendia as cores do Clube do Mé. Nós vencíamos por um a zero os varzeanos locais quando o juiz decidiu que Einstein se aplicava ao futebol e que o tempo era relativo, deixando a partida correr por quase uma hora além do normal para eles empatarem.


Mais precária que a várzea, só mesmo a “favelinha”. Assim eu e meu pai apelidamos o campinho que ficava dentro de uma favela, perto da nossa casa. Era um terrão enlameado com traves sem rede, pegado a um córrego. Sábado era dia de implorar para ele me levar pra favelinha.


A gente chegava com a bola, convidava a molecada que estava por ali e armava a pelada. Eu não tinha mais que oito anos. Quando acabava, meu pai colocava a turma no carro e pagava refrigerante para todo mundo no boteco do bairro. Sabe lá o quanto esses rachões na favelinha não moldaram meus conceitos...

Coisas que acontecem muito cedo na vida da gente marcam a consciência a ferro quente. Você não muda mais. Hoje não tenho oito anos, nem acho que ainda dê para entrar em favela como a gente entrava. O Marítimo e o Clube do Mé acabaram, foram demolidos para nascer um tal Parque do Povo. Hoje jogo bola com uma turma que aprendeu futebol assistindo ao campeonato europeu no pay-per-view, e me divirto como se estivesse na favelinha. Bola é tudo igual. Também jogo com meus chefes aqui na editora, mas não é porque são meus chefes que alivio o pé. Bola é tudo igual, e reduz as pessoas ao mesmo denominador também. No campo não tem chefe, nem favelado. Tem a bola.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Pincéis, guitarras e blá blá blá

Ontem o historiador-hipponga-cool Eduardo Bueno saiu em defesa de Bob Dylan no Jornal da Globo: “Dizer que ele canta mal é como falar que as mulheres que o Picasso pintava são feias. Bob Dylan é o cubista da voz”. Como é que é?! A despeito do brilhantismo de Bueno, que bobagem, não?! Acontece que antes de pintar aqueles quebra-cabeças desarrumados, Picasso dominou perfeitamente as técnicas mais apuradas, fez retratos que pareciam fotos, aprendeu tudo que os grandes mestres tinham a ensinar. Nada mais diferente do roqueiro setentão. Dylan sempre foi cru. Nada teve de elaborado, de modernidades. Foi transgressor na postura e nas letras, não na forma. É um apanhado de cacos, poeira, coisas sujas, lirismo de rua, que soube misturar com o velho folk americano e transformar em algo sublime. Canta com aquela voz fanhosa porque foi a única que deus lhe deu – não é um soprano lírico querendo modernizar sua arte. Estaria mais para pintor naïf: num jeitão tosco, fez grandes canções, grandes baladas, atingiu a profundidade. E viva Bob Dylan, que não precisa de desculpas para cantar mal! Assim como “nunca vi Beethoven fazer aquilo que Chuck Berry faz”, nunca vi Picasso tocar guitarra folk.

terça-feira, 4 de março de 2008

Água fria, lembranças e refrões em falsete

Fim-de-semana acampei em Trindade, com um amigo, como nos velhos tempos. A gente tinha marcado encontro com uma ondulação, mas um vento leste apareceu também e no fim não pegamos aaaaltas ondas. E, Jesus, que água fria! Acho que nem quando morei em Florianópolis vi coisa assim. Fria de formar uma névoa esbranquiçada na orla que parecia ar-condicionado. Ninguém esperava isso nessa época do ano, então levei só um short-john – aliás um short-john ridículo, amarelo fosforescente e laranja, bem anos 80, mas que funciona até hoje e tem a vantagem de que, se eu morrer no mar, certamente acharão meu corpo.

Lembramos dumas loucuras que aquela Trindade nos viu fazer há uns 10 anos... Na época eu achava que não era junkie, só um jovem de família que estava lá como observador da doidera, mas agora, olhando para trás e pensando... eu era junkie. Uma vez ficamos numa barraca que tinha o chão forrado de areia e peças de roupa suja, eu e dois amigos. Numa noite, um deles bebeu demais. Eu estava dormindo quando ele voltou. Tentei continuar dormindo quando abriu a barraca para vomitar pela primeira vez.
Quando repetiu o ritual, avaliei que não daria para dormir direito. E levantei definitivamente, rosnando todos os palavrões que conhecia, quando ele gorfou pela terceira vez – mas nessa não conseguiu abrir a portinha a tempo. Fui dormir ao ar livre, nuns colchões onde se engalfinhavam quatro caras ainda piores que meu brother, mais uns 2647 pernilongos... Enfim, éramos todos junkies, que se livraram da sina.

Sábado à noite fomos num show dos Titãs em Paraty. Era de graça, que mal teria? Mas, você sabe, a gente sempre deve desconfiar dessas coisas grátis, pagas pela prefeitura, na praça da cidade... As meninas ao redor eram aquelas hippies com barriga-pochete de vinho, o telão passava animações feitas em power-point, o som tinha sido equalizado por um surdo e o cara que “animava” a galera antes do show inventou de fazer brincadeiras tipo gincana com o público. Depois de quatro músicas, fomos embora jurando que só voltaríamos no dia que o Tom pegasse o Jerry. Imagino que a turnê da banda deve agora seguir para a Festa da Fruta-do-Conde de Pindamonhangaba.

Domingo voltamos cedo, tipo duas da tarde, porque meu amigo ia ao show do Iron Maiden. Ruuun to the hiiiiiills... Refrões da banda em falsete
a viagem inteira, no estilo Massacration. Pena não ter garantido meu ingresso. Mas o do Ozzy eu não perco. Nem o do New York Dolls. Voltamos durante o Corinthians e Palmeiras, se roendo de curiosidade sem notícias do jogo, já que na estrada nenhuma rádio se entende com a antena do carro. Fiquei pensando... Em tempos de sócio-torcedor, TV Timão e interatividade, os clubes poderiam oferecer um serviço que avisasse os principais lances dos jogos pelo celular, né?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Tudo de bom valeu mano

Exitem vocalistas esquisitos nesse mundo. Imagine um polaco enorme com dreads só no topo da cabeça, tipo uma mistura de viking com rastafari, ou de Ziggy Marley depois do trote da faculdade com Hulk Hooligan, com um vozeirão poderoso, que sobe ao palco de bermuda curta e tênis de corrida. Impacto puro. Assim foi o show da Fast Food Orchestra, banda de ska-ragga da Republica Tcheca que tocou ontem em Sampa.

O som é um ska pauleira, rápido e bem tocado, com vocais influenciados por rap e ragga. Letras em tcheco, inglês e (!) português. Os caras jogam no esquema quatro atrás e três na frente. Só craque. Na zaga, um baixista magrelo de boina, um tecladista com cara de que acabou de acordar, um guitarrista discreto e um baterista virtuoso e meio andrógeno. Lá na frente ficam um saxofonista e um trombonista que também cantam, junto com a figura do parágrafo anterior.

A galera tinha agitado no primeiro show da noite (King Rassan, ska instrumental, amigos meus), desanimado no segundo (Radio Ska, punk-ska adolescente) e voltou a pular com a energia do Fast Food. Impossível ficar indiferente aos caras. Aqui eu diria “vale a pena conferir”, mas como o show de ontem foi o último nessa passagem pelo Brasil e a terra deles fica meio longe, melhor postar um vídeo. Quem viu, viu.

Repare na letra, em português. O refrão diz “tudo de bom valeu mano”. Sensacional. O viking está filmando, aparece só de relance. Não dava para postar "aberto" do youtube, tem que clicar no link, sorry. Mas volte aqui depois!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O espírito do f***-se

Ah, não, escutar Marina antes do surfe não dá! alguém reclama no banco de trás.

- Meu amor se você foooor emboraaaaaaa...

Cara, esse som é louco, se liga na batida, tum, tá, tum, tá provoca Alemão, sabendo que a música não importa. Naquele momento, o bom-humor resistiria até ao último sucesso da Preta Gil. Impossível fazer cara feia quando o sol nasce e você está a caminho da praia, vendo se desmanchar a neblina que a noite depositou na Serra do Mar, nas encostas agora tingidas de laranja. Privilégio que só pode ser mais escandaloso se acontecer em plena terça-feira.

Isso mesmo, bate-volta relâmpago antes do trabalho. Por que não? Os sites de previsão de onda entoaram o canto da sereia. Eu só entro às onze. Alemão, produtor musical, não pega no pesado cedinho e tem bom gosto, apesar da trilha sonora duvidosa desta manhã. Os donos das outras duas pranchas amarradas no teto do carro arrumaram uma desculpa para bater o ponto atrasados. O combinado é voltar às nove. Nove significa nove! insisto. Se não estiver no carro às nove, volta de ônibus! – com aquele tom chato dos verdadeiros amigos.

O surfe estava incrível no Guarujá, clássico mesmo, daqueles raros. Mas, entre uma onda perfeita e outra melhor, um pensamento perturbador ficava boiando ali: daqui a pouco seremos obrigados a ir embora... Odioso sistema que tanto amamos! De tarde ondas douradas e lindas quebrarão nesta mesma praia, e eu estarei sentado em frente a um monitor cinza de 17 polegadas que trava a cada duas horas!

Ou não?

O espírito do foda-se está sempre rondando as almas inquietas. Fica na espreita. Quanto mais você envelhece, menos se manifesta, mas nunca deixa de existir, com sua lábia impertinente. E aí, colega? Troca uma pequena rebeldia por essas ondas, que, sabemos, não aparecem toda hora? No fim das contas, quando tudo passar, o que vai render uma história melhor para contar na cadeira de balanço?

O sol já estava quase dois palmos acima do horizonte. Digo, dois palmos medidos no final do comprimento do meu braço, não que essa fosse a distância real entre o horizonte e o sol, como você espertamente já imaginava. Importa é que o sol estava alto e era melhor perguntar as horas.

- Nove em ponto – respondeu um semelhante.

Hum... O que a gente tinha combinado, mesmo? Mordi os lábios, passei a mão aflita sobre a barba que começava a formar uma lixa e, em busca de resposta, mirei o horizonte. A resposta surgiu como uma parede de água verde-canário enviada para mim, com carimbo de remetente “Netuno” e tudo. Ela foi me levando, levando... e quando terminou, virei o bico da prancha e remei de volta para o oceano.

- Paraísos artifiiiiicia-ais...

Mas essa não é a história de um menino crescido que resolveu contar, com disfarçado orgulho, uma travessura. Não. É antes a batalha entre a vontade e a força esmagadora da consciência.

- E aí, brother? Tá na hora. Vamos subir?

- Vambora, Alemão.

Vitória da razão. Na onda seguinte, saí do mar com o leash entre as pernas e fui trabalhar. Mas depois pensei que disciplina talvez seja a liberdade suprema. E a liberdade total pode ser a pior prisão. Se você fizer sempre tudo o que der na telha, vira escravo da ansiedade e da impulsividade. Por outro lado, há um certo ponto da vida onde a miserável labuta cotidiana tem gosto de plenitude, independência... liberdade!

Só que o espírito do foda-se nunca desiste. Seria mesmo essa baboseira, ou você saiu da água por mera covardia? Será que esse apego à responsabilidade não é a boa e velha acomodação, a bunda-molice? Sei não, respondo ao fantasma. Mas ter quebrado a rotina da semana com uma manhã de ótimo surfe já foi uma dose satisfatória. E não fui tão caxias, senhor espírito das trevas. Aquela hesitação no mar me fez chegar quarenta minutos atrasado ao trabalho. Maior cara de pau. Para não falar da pele bronzeada. E o sorriso?

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

A tartaruga-junkie do Guarujá

Presença tão certa nas ondas de Pitangueiras quanto a molecada do Morro do Maluf é uma tartaruguinha que ali mora, pobre bichinha. Se você for surfista e paulista, deve saber de quem estou falando. Ela está sempre na área. No último ano, nos encontramos em todas (sem exagero) as sessões de surfe que fiz naquelas águas turvas que também adoro. Ela surge, glub, sobe, olha, respira, glub, desce, sucinta, simpática e, vá lá, suja.

Em suas periscópicas aparições, a maior habituée do canto norte causa sempre algum rebuliço. Cada vez que a cabeça rajada salta, ninguém fica indiferente.
A maioria abre um sorriso. Uns se assustam, mas a tartaruga-junkie não é de meter medo, fica na dela, não ameaça, não faz cara feia nem xinga ninguém de haule. Há ainda quem finja ignorá-la com ar blasé, tô-nem-aí, já acostumei, feito perua que cruza o Gary Oldman no aeroporto e desvia o nariz. Mas os mais esquisitos vêem a bichinha e se põem a refletir: há algo de podre no reino da fauna marinha.

O que dá na cabeça retrátil de uma tartaruga para morar em Pitangueiras, uma das praias mais sujas do litoral paulista, tendo por aí tanto lugar fresco e agradável para habitar? Nadasse um pouco e iria encontrar água verde e comida abundante, mas não. A tartaruga-junkie gosta mesmo é de Pitangueiras, onde uma muralha de prédios encobriu a Serra do Mar e um fluxo interminável de esgoto tornou marrom a água. Será que viciou nas algas de lá? - que devem ser o equivalente marinho do churrasco grego de estádio de futebol. Brincadeiras à parte, o fato é que ela vive ali; e ali se alimenta.

Senhorita Junkie se sente à vontade entre os incontáveis surfistas do pedaço. Pensa, coitada, que não somos uma espécie predadora. Deve ter reparado que estamos mais interessados nas ondas que passam, como nuvens, sobre sua cabeça, por isso fica bem perto, sinal de outra mutação contra-evolutiva da coitada. Como as pombas das metrópoles, ela perdeu o medo dos humanos. Os terríveis humanos... Se entendo alguma coisa desses bípedes, acho que nossa amiga não deveria dar mole assim. Dia desses alguém faz com ela como fizeram com o golfinho Tião, lembra? O pessoal do litoral norte enfiou tanto palito de sorvete no orifício respiratório dele que um garoto acabou levando uma focinhada e morreu.

Em suma, a réptil está se tornando uma tartaruga de cidade grande. Já vive acostumada com correria, movimento, sujeira. Aposto como acha outras tartarugas umas caipiras. Nada meio apressada, sem perder tempo com pensamentos flutuantes. Anda com alguma gastrite, e talvez esteja consumindo ervas terapêuticas para dormir melhor. Em compensação está sempre por dentro das últimas, pelo menos quando o assunto é bermuda de surfista, decomposição de embalagens de salgadinho, novos modelos de absorvente feminino usado. Sabe como é, cidade grande tem seus males, mas tem suas benesses.

Outro dia mergulhei no quintal da cascuda antes das sete da manhã. Lá estava ela. Tinha um metro de onda nas séries, boa formação, pouca gente. Fiquei mais de três horas surfando. Perfeito. Tudo perfeito. Tudo certo no reino dos humanos. Nada de podre nas salas de reunião refrigeradas, nada fedendo nas entranhas de nossas cidades sujas. Nada. Uma onda graúda cavalga em minha direção. A tartaruga-junkie, cada dia mais contaminada de humanidades, emerge tão perto que pela primeira vez posso reparar em seus olhos mortiços.